“Jane Eyre” não me parece ser dos clássicos mais populares do género (resultado de um estudo básico patrocinado por mim própria). Quando menciono o livro a algum amigo ou conhecido, é raro aquele que está familiarizado com a história, a autora ou o próprio título. E, no entanto, para muitos dos que o lêem, amam. Em 2024 decidi relê-lo, vários anos volvidos desde a minha primeira leitura, experiência essa que não me deixou marcas vincadas na altura, confesso. Esperava surpreender-me muito com esta nova investida, mas acabou por não acontecer.
Da autoria de Charlotte Bronte, escritora inglesa do século XIX, “Jane Eyre” foi o primeiro romance comercializado da autora mas sob o pseudónimo “Currer Bell” pois como a própria disse os livros escritos por mulheres eram ainda vistos com preconceito pela sociedade erudita. Charlotte e as irmãs acabariam por escrever sob pseudónimos masculinos mas mantendo as suas iniciais. “Jane Eyre” é o que se pode chamar um “romance de formação“, um género literário focado no crescimento moral de uma protagonista desde a sua infância até ao início da idade adulta, a janela temporal onde essencialmente se forma o carácter de um indivíduo. Jane inicia o romance como uma criança de dez anos mal-amada e mal-tratada pela tia e pelos primos que dão o mote à narrativa ao despachá-la para uma instituição educativa para órfãos onde à privação de amor se juntarão também a fome, o frio e os castigos. Findo esse longo tormento, o início da sua carreira como perceptora leva-a a Thornfield Hall e a Mr. Rochester, um cavalheiro por quem começa a nutrir sentimentos amorosos que podem ou não ser recíprocos.
Embora a relação de ambos seja um grande destaque da obra, claro, o palco da história é destinado à própria Jane Eyre. Com uma narrativa contada na primeira pessoa, temos o privilégio de aceder aos pensamentos desta personagem tão rica, sofrida mas insubmissa, mal-tratada mas não rancorosa, simples mas esplendorosa. Episódios lúgubres do seu percurso são baseados em experiências pessoais da própria Charlotte Bronte, que teve a infelicidade de ver morrer todos os seus irmãos antes dela. Seria maravilhoso que o final moderamente feliz do livro partisse também da mesma base mas infelizmente assim não aconteceu: a autora morreu aos 38 anos nem um ano após o seu casamento, devido a complicações da gravidez, a par com o bebé.
Quando ouvires dizer que morri, não tenhas pena: não há razão para ter pena. A minha alma está tranquila. Não deixo ninguém a quem faça falta. Assim, escaparei a grandes sofrimentos. Eu não tinha qualidade nem talentos para vencer no mundo. Viveria sempre mal.
O trilho de Jane é de facto o melhor que se leva do livro, sem demérito para o mistério que surge entretanto envolvendo Thornfield Hall e que é revelado numa altura bem inconveniente. O que não funcionou tão bem para mim foi o ritmo da narrativa. Desde o início que o compasso é moderado, nem lento nem apressado, mas assim que é revelado o mistério da casa, o livro espoleta um vácuo de capítulos inócuos (de “encher chouriços“, para bom entendedor) para depois culminar numa sucessão repentina de pequenos milagres e felizes coincidências. Claro que sabe bem ver a recompensa de um carácter virtuoso a vencer na vida, mas o clímax da história acontece talvez demasiado cedo e torna tudo o que vem a seguir algo aborrecido e desinteressante. E novelesco demais, também.
– Julga que eu aceitaria ficar aqui, sem nada sendo aos seus olhos? Toma-me por uma boneca, por um autómato sem alma que deixará arrancar-lhe sem protestos o seu bocado de pão e o seu copo de água? Pensa que por eu ser pobre e humilde, pequena e desengraçada, não tenho coração nem alma? Engana-se! E se Deus me tivesse dado beleza e fortuna, saberia tornar-lhe a si esta separação tão cruel como o é para mim. Falo-lhe esquecendo-me das convenções: é a minha alma que fala à sua, como se do outro lado do túmulo estivéssemos já diante de Deus, iguais! Porque nós somos iguais!
– Somos iguais! – repetiu o Sr. Rochester – Sim, Jane, somos iguais.
Os teóricos e intelectuais da literatura de certeza que já discorreram mais e melhor sobre esta obra do que eu, por isso ide lê-los também. Eu posso falar apenas da minha perspectiva de leiga, e a leiga diz que “Jane Eyre” não fica na memória como o epíteto do romance romântico mas talvez como um título vanguardista do empoderamento feminino, essa expressão já pejada de alguma vulgaridade hoje em dia mas que no século em que foi escrito ainda acarretava um maior significado. É sempre agradável, como mulher, ler sobre uma protagonista não conformada, não subjugada, vergada mas ainda assim honesta, independente e íntegra.
Talvez não seja um dos meus clássicos preferidos mas Jane é definitivamente uma das minhas personagens favoritas. É uma obra que desperta mais e mais interesse à medida que desvendamos o que pode ter estado na sua origem e os caminhos em que foi pioneira. Para mim não é brilhante, mas é um livro que qualquer leitor digno de nota deve ler pelo menos uma vez.