Estou de volta às autoras portuguesas e a mais uma das recomendações da Dora Santos Marques. A Ana Portocarrero é presença assídua no Patreon da Dora (se gostam de conteúdo diário sobre livros, já lá deviam estar!), e é uma moça que depois de muitas e diversas empreitadas profissionais se estreou este ano na literatura com o romance “A (in)felicidade de Sara Lisa“.
Sei que há uma grande vertente autobiográfica nesta obra e, não conhecendo eu a autora pessoalmente, consigo ainda assim detectar algumas semelhanças entre ela e a sua protagonista. A Ana é daquelas pessoas que irritam de tão felizes que são – venha chuva ou venha sol, está sempre bem disposta, de riso fácil e optimismo pronto. É a personificação do clássico apócrifo atribuído a Fernando Pessoa “Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo“, que até hoje detém o galardão de frase mais utilizada em fotos de perfil do Facebook. E o mote da obra é inclusive baseado numa vivência real da autora: num curso de escrita criativa ouviu de um escritor que boas histórias só podem advir de experiências de miséria e de criadores infelizes ou sofredores. E isso deixou-a preocupada, pois sendo naturalmente feliz como é que cumpriria o seu sonho de ser escritora?

Portanto, os leitores entenderão como a Ana se emprestou a si mesma à protagonista Sara Lisa. A Sara é uma jovem aspirante a escritora, mimada e realizada, mas que acha que não consegue desbloquear a sua máxima criatividade enquanto não viver a infelicidade, algo que para ela parece inatingível. Um dia, enquanto deambula pela sua querida cidade do Porto, tropeça em Gael, um sem-abrigo andrajoso mas culto, poliglota e com um discurso pautado por um “Ha,ha,ha” a cada três frases. Os dois trocam umas ideias e Gael diverte-se com a demanda de Sara e dispõe-se a ajudá-la a encontrar a tal da infelicidade.
Os capítulos que se seguem relatam episodicamente os cenários engendrados por Gael para ajudar Sara Lisa a encontrar o seu lugar escuro. O leitor mais racional (ou chato, como eu) poderá questionar-se como raio é que um inócuo e alcoólico sem-abrigo consegue conjurar tais situações, mas é óbvio que o desenvolvimento do livro procura entregar uma abordagem mais metafórica da premissa e não um enredo contemporâneo verosímil – um toque simples e eficaz de um bom realismo mágico. Não achei as situações particularmente escandalosas, violentas ou deprimentes. Basta-nos ver dez minutos das crónicas criminais da televisão portuguesa para invocarmos tramas bem mais aterradoras do que as que Sara Lisa tem pela frente. Caramba, a rapariga é encarcerada numa prisão feminina e as cenas mais chocantes são as que envolvem alguém com menos de sessenta anos a deliciar-se com um bolo de arroz. Mas, novamente, não me parece que seja suposto chegarmos a estes questionamentos. Não é preciso ir mais longe, e invocar cenas de guerra, fome e depravação para se chegar às mesmas conclusões. E, provavelmente, a Ana é tão luminosa – e feliz! – que nem consegue ser mais lúgubre na sua escrita, mesmo que quisesse.
Aquele era o momento, eu ia conseguir: ia sentir-me tão desolada que escreveria quatro páginas em forma de arte. Cinco páginas, se o nevoeiro se mantivesse por mais umas horas. Tinha a tristeza a um palmo, mais um pouco e poderia agarrá-la. Seis páginas, se… “Ah, isto bai abrir!, ouvi. “Isto bai abrir”, talvez a mais ouvida frase portuense no verão: a esperança à moda do Porto. “Isto bai abrir” fez-me sorrir. Raios.
A premissa do livro é excelente, afinal é uma verdade praticamente adquirida por vários escritores nacionais e internacionais – estou a lembrar-me agora de Stephen King, que inclusive materializou este pensamento no seu famoso “Misery” – e um hipotético obstáculo que faz tremer Sara Lisa (e a sua criadora). Gostava desde já de aliviar a Ana desse seu tormento e dizer-lhe que se safou muito bem com esta sua primeira obra, e sem precisar de descer ao temido fundo do poço – a qualidade literária da sua prosa surpreendeu-me bastante pela positiva e foi o grande ponto forte do livro, para mim. A autora é inteligente, versátil, sabe usar as palavras e jogar habilmente com o sério e com o ridículo. Com uma arma desta qualidade, a autora pode escrever qualquer coisa.
Em relação ao enredo, não adorei a resolução. Para uma narrativa que se desenvolveu tanto no campo metafórico acabou por ter uma conclusão demasiado mundana e dramática que acho que não se coaduna com um tipo de livro em que a caracterização de personagens (quem são, como são, de onde vêm, para onde vão, com quem vão) não é o destaque. Se me pedissem uma alternativa, também não saberia dizer qual consideraria o final mais ideal para a história; só sei que este não me satisfez. Vale o que vale.
Sendo um romance de estreia, “A (in)felicidade de Sara Lisa” é incrível e muito promissor. E nem mencionei ainda, mas aplaudo de pé a escolha da capa e do título da obra. Gostava muito de ler algo mais longo escrito pela autora mas, pelo que ouvi em algumas entrevistas, não é algo que pareça estar-lhe na génese, um pouco à semelhança da Maria Francisca Gama. Tenho pena, mas vou querer ler tudo de igual forma. Se a Ana escrevesse bulas de medicamentos, certamente que as leria também. “A (in)felicidade de Sara Lisa” é uma maravilhosa adição à minha estante, não será talvez um dos romances mais memoráveis a vir habitá-la mas será certamente um que guardarei com muito carinho.
