Um livro que anda nas bocas do mundo, publicado no Verão do ano passado e vencedor do Goodreads Choice Awards (que vale o que vale, como saberão). É um memoir, um relato episódico escrito pela própria autora e ex-actriz Jennette McCurdy sobre as manipulações e abusos (emocionais e físicos) de que foi alvo na infância e adolescência às mãos da própria mãe.
Para quem não está familiarizado, Jennette foi a coprotagonista de duas grandes produções da Nickelodeon entre 2007 e 2014, iCarly e Sam & Cat (esta última também protagonizada por Ariana Grande, por quem me ficou a parecer que Jennette não tenha guardado especial amizade). Apesar de iCarly ter estreado ainda na altura da minha pré-adolescência, só muito mais tarde é que fiquei a saber da existência dele e, por isso, nunca o acompanhei nem à carreira precoce da então atriz. O que não é requisito para criar empatia com os episódios narrados, atenção. E, de qualquer forma, as controvérsias e exploração de crianças e jovens nos bastidores de filmes e séries do género não são relatos únicos, infelizmente, principalmente nesses anos. Podemos sempre desviar os olhos para caras que nos são mais conhecidas, como as gémeas Olsen, Demi Lovato ou a Bella Thorne, para continuar a ouvir histórias igualmente desagradáveis. Se quisermos ir a extremos, poderíamos ainda explorar a vida de Drew Barrymore, Brooke Shields, Macaulay Culkin e Judy Garland. Mas isto não é nenhuma competição para ver quem é o “child actor” que mais sofreu em Hollywood; todos terão a sua bagagem mais ou menos trágica e/ou traumática. E hoje falamos da Jennette.
Nascida no seio de uma família mórmon “ligeiramente” disfuncional (teria de recorrer a mais dois parágrafos só sobre todos os problemas desta família peculiar…), Jenny nunca sonhou ser atriz. Essa era, sim, a grande ambição da sua mãe, Debbi, e devido à total adoração que Jennette tinha por ela, como única filha, foi-se vergando às suas vontades e aos seus desaires, passando 15 anos da sua vida em castings e constante trabalho para tentar vingar no competitivo circo de Hollywood mas, acima de tudo, a tentar deixar a mãe feliz e orgulhosa.
Se a Mãe não queria mesmo o que era melhor para mim, se não fazia mesmo o que era melhor para mim, ou não sabia mesmo o que era melhor para mim, isso significa que toda a minha vida, toda a minha perspetiva e toda a minha identidade foram construídas numa base falsa (…) confrontar essa base falsa implicaria destruí-la e construir uma nova de raiz. Não faço a menor ideia de como fazer tal coisa. Não faço a menor ideia de como viver sem ser na sombra da minha mãe, sem que todos os meus gestos sejam ditados pelo que ela quer, pelo que ela precisa, pelo que ela aprova.
É aterrador ir conhecendo esta mãe, mesmo sob o olhar de uma filha para quem a mãe é tudo. Debbi é uma hoarder (acumuladora compulsiva de coisas, tanto que a certo ponto ninguém tem quartos e dormem todos juntos no chão da sala), é adúltera, manipuladora emocional sem quaisquer escrúpulos, nítido, por exemplo, na constante exploração que faz do facto de ser uma sobrevivente de cancro da mama para chegar e entrar onde quer. É muito desagradável ler passagens onde Jennette expressa de forma crua a agonia que certas exigências da mãe lhe provocam e que ainda assim acaba sempre por acatar, porque ela ali não tem desejos. E o facto desta dependência não esmorecer no momento em que Debbi morre, só mostra o quão transcendente e inexorável era o poder que tinha sobre a filha.
Escrito de forma simples e direta, “Ainda bem que a minha mãe morreu” é a catarse de que Jennette precisava e mais um passo naquilo que espero que seja, sinceramente, o seu processo de recuperação. Os anos que lhe foram roubados não lhe poderão ser restituídos, é certo, mas há tanto que ainda pode fazer com os muitos que ainda lhe restam. Quem sabe, agora que deixou a atuação para trás, se não se lança na sua carreira literária, algo que tinha interesse em perseguir e que não teve liberdade para fazer.
Um relato nem sempre fácil de ler mas mais um abre-olhos para a problemática da indústria mirim em Hollywood e do que a falta de acompanhamento e aconselhamento certo pode fazer às jovens atrizes. Porque nem todas se tornarão na próxima Zendaya ou Miley Cyrus ou qualquer outro nome de sucesso. Uma história que gostava muito de acreditar ser uma exceção mas não só não acredito nisso como também imagino que haja muito pior ainda por revelar por aí.
Foi um livro que surpreendeu bastante
sem dúvida um relato que merece ser lido