Leituras #14 – O Homem que Perseguia a sua Sombra

É hora de pôr na mesa a grande questão: ‘Personagens ou história, o que valorizas mais num livro?‘. Em algum momento da nossa experiência literária já nos colocámos esta questão, com certeza, e, se forem como eu, a resposta não é directa: depende.

Sou da opinião de que séries – duologias, trilogias e outras gias – se sustentam maioritariamente na qualidade das suas personagens; quanto mais cativantes, relacionáveis e bem desenvolvidas forem, maior a probabilidade de eu continuar para o próximo volume. Já em livros standalone não sou tão exigente nesse aspecto, e interessa-me mais uma boa história ou uma boa mensagem. É claro que para toda a regra há excepção (e claro que o melhor é que seja tudo bom!) mas, por norma, são estes os princípios.

E com isto chegamos ao “O Homem que Perseguia a sua Sombra“, quinto volume da famosa série ‘Millenium‘ criada pelo falecido Stieg Larsson. Considerada por muitos como a série que lançou os thrillers nórdicos para a ribalta em que agora estão, a saga ‘Millenium’ apareceu em 2005 e relata a história de duas personagens – o jornalista sexy Mikael Blomkvist e a hacker problemática Lisbeth Salander – que criam uma amizade pouco convencional depois de denunciarem juntos um crime de grande magnitude na Suécia.

A série estava inicialmente pensada para ter 10 volumes, plano esse que acabou furado com a morte precoce do autor que tinha apenas escrito os três primeiros livros.  David Lagercrantz toma conta da série desde 2013 mas é de notar que tudo o que foi produzido até então não se baseia em ideias ou rascunhos deixados por Stieg Larsson (cortesia da sua querida viúva). A pergunta que se impõe é se David se tem mostrado à altura para esta tarefa hercúlea. Infelizmente, a opinião geral não lhe tem sido favorável.

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Lisbeth Salander cumpre uma curta pena no estabelecimento prisional feminino de Flodberga e faz o possível por evitar qualquer conflito com as outras reclusas, mas ao proteger uma jovem do Bangladesh que ocupa a cela vizinha, é imediatamente desafiada por Benito, a reclusa que domina o bloco B. Holger Palmgren, o antigo tutor de Lisbeth, visita-a para lhe dizer que recebeu documentos que contêm informações sobre os abusos de que ela foi vítima em criança. Lisbeth pede ajuda a Mikael Blomvkist e juntos iniciam uma investigação que pode trazer à luz do dia uma das experiências mais terríveis implementadas na Suécia no século XX. Os indícios conduzem-nos a Leo Mannheimer, sócio da corretora de valores Alfred Ógren, com quem Lisbeth tem em comum muito mais do que algum deles podia pensar. 
“O Homem que Perseguia a Sua Sombra” é já o segundo livro escrito por David Lagercrantz e é ainda menos consensual do que o seu antecessor, “A Rapariga Apanhada na Teia de Aranha“. Mesmo agora, passados 3 meses desde que li o livro, continuo indecisa quanto à classificação a atribuir ao livro.

Esquecendo personalidades e acontecimentos derivados de volumes anteriores da série, posso dizer que gostei da trama principal. Experiências sociais e genéticas constituem um tema simultaneamente polémico e fascinante para mim. São áreas cujos estudos e conclusões atraem a minha atenção, apesar de me custar um bocado a admitir; afinal, está subjacente que alguém terá de sofrer ou ser ludibriado de alguma maneira. “Nature vs Nurture“, que debate o que determina o comportamento humano – genética ou experiência de vida, é um tema de relevo no livro, o que me agradou. No entanto, acho que poderia ter sido mais explorado; o pouco que se falou foi bom, mas mais se poderia ter dito. Aposto que o nosso José Rodrigues dos Santos teria escrito uma trilogia sobre o assunto, e cada livro com mais de 500 páginas! Há gente que não sabe aproveitar.

Acontece que o livro peca por tentar focar-se em demasiadas coisas ao mesmo tempo: experiências com gémeos, islamismo retrógrado, economia e finanças, redes neuronais e hacking, corrupção de estabelecimentos prisionais e sabe Deus que mais. E isto tudo em pouco mais de 350 páginas! É óbvio que não há espaço para desenvolver condignamente todos os aspectos, mesmo que alguns tenham mais destaque que outros. Diálogos estranhos e feitos a correr, cenas de acção confusas e inverosímeis, it’s a mess. Se eu quiser ler uma panóplia de temas mesclados e desconexos vou ali ao quiosque comprar o jornal. Com livros, sou um bocado mais exigente.

Portanto, a história tem pontos fortes e pontes fracos. Então e as personagens? Como mencionei no início, são elas que determinam a minha ligação a uma série literária, na maioria das vezes. E no que toca à série Millenium não sou diferente do resto da população: adoro a Lisbeth Salander. E sim, estou ciente de que é uma personagem meio fantasiosa, diria até cartoonesca, mas identifico nela muitas características que projectava numa Mariana idílica há uns anos atrás: a rapariga forte e confiante que se veste de preto e usa piercings e tatuagens, que é expert em segurança informática e que pratica kickboxing nas horas vagas para derrotar os mafiosos da noite. Hoje, tenho um Mestrado em Engenharia Informática, visto casacos pretos e tenho as orelhas furadas. Mas, hey, pelo menos também não sou bonita, por isso não estou assim tão longe da minha querida Lisbeth… right?

Posto isto, é óbvio que a pouca participação da Lisbeth neste livro tenha sido uma grande desilusão. Como se já não fosse mau o suficiente terem de relegar a melhor personagem para um segundo plano totalmente distinto do resto do livro, ainda tiveram de a descaracterizar nos poucos momentos em que aparece. Demasiado impetuosa, a envolver-se em situações violentas que nada lhe dizem respeito e a tomar decisões malucas que são claramente uma tentativa de tornar as cenas uau mas que são só estapafúrdias. Por que raio não a envolveram mais no assunto dos gémeos, esse sim, um assunto com o qual ela está directamente relacionada!! Temos revelações interessantes sobre o passado da Lisbeth (mais um ponto a favor!), nomeadamente a origem da tatuagem do dragão e o interesse do governo nas irmãs Salander, mas nem nisso nos podemos focar porque a Lisbeth está muito ocupada com problemas de que ninguém quer realmente saber.

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E atenção que não tenho nada contra o Mikael Blomkvist. Também gosto muito de ler os capítulos dele e acho que é um excelente sidekick para a Lisbeth, mas é isso mesmo que ele é – um sidekick. Quando vemos um episódio de C.S.I Miami até pode não nos incomodar ver como é que o nerd do laboratório se está a dar com a nova namorada, mas não é por isso que vemos a série – queremos é ver o crime a ser resolvido e o Horatio a pôr os óculos de forma dramática. 
Se vejo a Lisbeth Salander na capa de um livro de uma série da qual é protagonista, espero que a moça tenha alguma relevância na história. Assim, só me sinto enganada.
Tratando-se de um quinto livro de uma série pela qual nutro um carinho especial, não dá para ignorar a importância das personagens na história, por muito boa que esta seja. É claro que pegar no trabalho de um outro autor e tentar manter as expectativas não é tarefa fácil nem algo que eu inveje. Mas se me descaracterizam as pessoas, ridicularizam os diálogos e as cenas de acção, desvalorizam a construção de um enredo decente e me retiram o prazer de simplesmente ler um livro bem escrito, então não sei a que me devo agarrar. 
Não sei se o autor tinha prazos apertados a cumprir com a editora ou alguns problemas pessoais, mas este livro e esta série merecem muito mais a sua atenção do que aquilo que me foi mostrado em “O Homem que Perseguia a Sua Sombra”. 
Não me sinto propriamente confiante a recomendar este livro à audiência – fãs da série ficarão desiludidos e fãs de thrillers não ficarão embevecidos. Continuo a dizer que gostei da história principal sobre os gémeos e as experiências na Suécia, por isso, talvez o recomende para quem se interessar por esses assuntos e não se importar muito com a qualidade literária no geral. Mas sei que há potencial para mais e, deste lado, a chama da esperança vai-se mantendo acesa. Até quando?

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