É hora de pôr na mesa a grande questão: ‘Personagens ou história, o que valorizas mais num livro?‘. Em algum momento da nossa experiência literária já nos colocámos esta questão, com certeza, e, se forem como eu, a resposta não é directa: depende.
Sou da opinião de que séries – duologias, trilogias e outras gias – se sustentam maioritariamente na qualidade das suas personagens; quanto mais cativantes, relacionáveis e bem desenvolvidas forem, maior a probabilidade de eu continuar para o próximo volume. Já em livros standalone não sou tão exigente nesse aspecto, e interessa-me mais uma boa história ou uma boa mensagem. É claro que para toda a regra há excepção (e claro que o melhor é que seja tudo bom!) mas, por norma, são estes os princípios.
E com isto chegamos ao “O Homem que Perseguia a sua Sombra“, quinto volume da famosa série ‘Millenium‘ criada pelo falecido Stieg Larsson. Considerada por muitos como a série que lançou os thrillers nórdicos para a ribalta em que agora estão, a saga ‘Millenium’ apareceu em 2005 e relata a história de duas personagens – o jornalista sexy Mikael Blomkvist e a hacker problemática Lisbeth Salander – que criam uma amizade pouco convencional depois de denunciarem juntos um crime de grande magnitude na Suécia.
A série estava inicialmente pensada para ter 10 volumes, plano esse que acabou furado com a morte precoce do autor que tinha apenas escrito os três primeiros livros. David Lagercrantz toma conta da série desde 2013 mas é de notar que tudo o que foi produzido até então não se baseia em ideias ou rascunhos deixados por Stieg Larsson (cortesia da sua querida viúva). A pergunta que se impõe é se David se tem mostrado à altura para esta tarefa hercúlea. Infelizmente, a opinião geral não lhe tem sido favorável.
Esquecendo personalidades e acontecimentos derivados de volumes anteriores da série, posso dizer que gostei da trama principal. Experiências sociais e genéticas constituem um tema simultaneamente polémico e fascinante para mim. São áreas cujos estudos e conclusões atraem a minha atenção, apesar de me custar um bocado a admitir; afinal, está subjacente que alguém terá de sofrer ou ser ludibriado de alguma maneira. “Nature vs Nurture“, que debate o que determina o comportamento humano – genética ou experiência de vida, é um tema de relevo no livro, o que me agradou. No entanto, acho que poderia ter sido mais explorado; o pouco que se falou foi bom, mas mais se poderia ter dito. Aposto que o nosso José Rodrigues dos Santos teria escrito uma trilogia sobre o assunto, e cada livro com mais de 500 páginas! Há gente que não sabe aproveitar.
Acontece que o livro peca por tentar focar-se em demasiadas coisas ao mesmo tempo: experiências com gémeos, islamismo retrógrado, economia e finanças, redes neuronais e hacking, corrupção de estabelecimentos prisionais e sabe Deus que mais. E isto tudo em pouco mais de 350 páginas! É óbvio que não há espaço para desenvolver condignamente todos os aspectos, mesmo que alguns tenham mais destaque que outros. Diálogos estranhos e feitos a correr, cenas de acção confusas e inverosímeis, it’s a mess. Se eu quiser ler uma panóplia de temas mesclados e desconexos vou ali ao quiosque comprar o jornal. Com livros, sou um bocado mais exigente.

Portanto, a história tem pontos fortes e pontes fracos. Então e as personagens? Como mencionei no início, são elas que determinam a minha ligação a uma série literária, na maioria das vezes. E no que toca à série Millenium não sou diferente do resto da população: adoro a Lisbeth Salander. E sim, estou ciente de que é uma personagem meio fantasiosa, diria até cartoonesca, mas identifico nela muitas características que projectava numa Mariana idílica há uns anos atrás: a rapariga forte e confiante que se veste de preto e usa piercings e tatuagens, que é expert em segurança informática e que pratica kickboxing nas horas vagas para derrotar os mafiosos da noite. Hoje, tenho um Mestrado em Engenharia Informática, visto casacos pretos e tenho as orelhas furadas. Mas, hey, pelo menos também não sou bonita, por isso não estou assim tão longe da minha querida Lisbeth… right?
Posto isto, é óbvio que a pouca participação da Lisbeth neste livro tenha sido uma grande desilusão. Como se já não fosse mau o suficiente terem de relegar a melhor personagem para um segundo plano totalmente distinto do resto do livro, ainda tiveram de a descaracterizar nos poucos momentos em que aparece. Demasiado impetuosa, a envolver-se em situações violentas que nada lhe dizem respeito e a tomar decisões malucas que são claramente uma tentativa de tornar as cenas uau mas que são só estapafúrdias. Por que raio não a envolveram mais no assunto dos gémeos, esse sim, um assunto com o qual ela está directamente relacionada!! Temos revelações interessantes sobre o passado da Lisbeth (mais um ponto a favor!), nomeadamente a origem da tatuagem do dragão e o interesse do governo nas irmãs Salander, mas nem nisso nos podemos focar porque a Lisbeth está muito ocupada com problemas de que ninguém quer realmente saber.
