COMO APARECEU NA MINHA ESTANTE?
Todos nós estamos cientes da existência dos chamados livros ‘clássicos’, aqueles livros famosos dos quais todos conhecemos os títulos e, com sorte, até os autores e as histórias, e que surgem pelo menos numa pergunta dos concursos do “Quem Quer Ser Milionário?”. Toda a gente parece conhecê-los, e, no entanto, quase ninguém os leu realmente. Nós, amantes sérios da leitura, somos os poucos que realmente ganhamos coragem para o fazer.
No ano de 2014 aconteceu-me um desses momentos de coragem. Num acto de loucura, pedi aos meus pais como prenda de Natal o livro “Os Miseráveis”. Por sorte o meu pai tinha desde pequeno um exemplar que tinha comprado no Círculo de Leitores, em excelente estado, que acabou por ser o meu presente. Confesso que na altura me assustei. Afinal são 5 livros, cada um do tamanho de um livro normal.
Logo em Janeiro de 2015 comecei a ler. Li as primeiras 83 páginas e depois fiz uma pausa. Uma pausa de, digamos, aproximadamente 9 meses. O início foi bastante maçador, e durante esse tempo foi difícil encontrar vontade de voltar a pegar nele. Até que em Outubro do ano passado lhe limpei o pó e recomecei a ler. Em Dezembro já tinha terminado tudo, e finalmente fiquei apta a partilhar uma opinião.
DE QUE FALA?
Publicado em 1862, ‘Les Misérables’ é uma obra escrita pelo francês Victor Hugo. Apesar de ser frequentemente referida como a sua obra mais famosa, aposto o meu salário em como mais de 90% das pessoas do mundo mais facilmente reconheceriam o título “O Corcunda de Notre Dame” do que “Os Miseráveis”. Mas esta é só a opinião de uma pessoa que ainda nem trabalha e que gosta de apostar o salário que ainda não ganha só porque é engraçado.
Adiante. A obra é dividida em 5 volumes, aos quais foi dado o nome de uma personagem principal, excepto o quarto, provavelmente porque VH não conseguiu escolher um só miserável dos tantos que aí surgem para figurar no título. Temos então quatro grandes personagens: Fantine, Cosette, Marius e Jean Valjean, cujas vidas eventualmente se cruzam no período da história francesa compreendido entre a Batalha de Waterloo e a ‘revolução’ de 1832. Ao longo do livro acompanhamos a vida destes quatro e outros tantos que vão aparecendo e desaparecendo, durante um período de 8 anos.
Jean Valjean é a personagem principal do livro e a única que entra na vida de todas as outras personagens importantes da obra. Nascido na miséria, foi preso quando tentava roubar um pão para alimentar os filhos da sua irmã, um crime que inicialmente lhe rendeu ‘apenas’ 5 anos de trabalhos forçados nas galés, sob o número 24601. Esse período viu-se, no entanto, alargado para 19 anos, depois de várias tentativas falhadas de fuga. Uma vez que é impossível resumir as milhares de páginas que formam o livro em poucos parágrafos, segue de seguida uma versão curta, para quem tiver curiosidade (ou para quem quiser fingir que leu o livro sem ter de passar pelo tormento de ler realmente).
O QUE ACHEI?
Confesso que não foi um livro fácil de ler, e atrevo-me a dizer que se não tivesse visto adaptações cinematográficas da obra recentemente provavelmente teria deixado o livro de lado durante mais uns meses.
Todos os personagens e cenários são muito bem desenvolvidos, e a própria história é contada a um ritmo que nos faz de facto querer saber o que vai acontecer a seguir. Infelizmente, por cada página de avanço na história temos de levar com três páginas ou de descrição exaustiva de um cenário irrelevante, ou de reflexões sobre assuntos que aconteceram uns quantos anos atrás e que são também irrelevantes para a história (ou quase), ou ainda exposição demasiado extensa de vivências passados de uma personagem. Não me interpretem mal, todos estas três coisas são importantes e devem sim ser adicionadas à acção principal de um livro. Mas os meus problemas começam quando essas mesmas coisas ocupam mais de um terço do livro! Dizendo assim parece pouco, mas e se eu vos dizer que isso corresponde a aproximadamente 635 páginas (na edição que eu li), a cena fica mais séria. O número médio de páginas que constituem os livros que leio regularmente ronda as 400 páginas. Portanto, a quantidade de informação que rodeia o plot principal, sem ter efeito nele, chega para cobrir à vontade um desses livros normais. Parece-me relevante destacar esta situação.
Na verdade, várias das reflexões de Victor Hugo captaram o meu interesse, nomeadamente aquelas que ainda hoje, dois séculos após o lançamento da obra, são válidas, como o fervor religioso levado ao limite. Por outro lado, capítulos a descrever a concepção dos esgotos de Paris não me apelaram tanto à leitura, vá-se lá perceber porquê. Neste âmbito das histórias paralelas à acção principal, estava especialmente ansiosa para ler referências e factos históricos, e fiquei desiludida quanto a esse campo. Não que eles não existam, por exemplo, no volume 2 vários capítulos são dedicados apenas à batalha de Waterloo, mas o meu interesse recaía mais para o lado de o que acontecera após essa mesma batalha (quem era o rei, porque é que estava o povo tão descontente, etc). Penso que é no volume 4 que Victor Hugo finalmente toca nesse ponto, mas de forma muito superficial, na minha opinião. Na única ocasião em que não me importava que ele dissertasse por várias páginas, o autor opta por uma abordagem mais light. Provavelmente tal seja devido ao facto de o livro ter sido publicado uns meros 30 anos depois dos acontecimentos relatados terem acontecido, e Victor Hugo ter considerado esses factos suficientemente esclarecidas na altura para ter de os descrever com tanto detalhe na obra. O que eu sei é que por essa altura tive de ler o livro com uma mão a segurar o livro e a outra a segurar o smartphone com a Wikipedia aberta para ter a certeza de que não me perdia (muito).
A história propriamente dita é interessante e bem encaminhada. Muitas questões que muitos espectadores dos filmes colocavam, eu incluída, são esclarecidas no livro. Se esses esclarecimentos são convincentes ou não, cabe a cada um decidir. Para mim continua a ser difícil acreditar que um ex-condenado como Jean Valjean, a quem era recusado trabalho e guarida devido à sua condição legal, tenha conseguido tornar-se o homem mais rico de uma cidade, tão rico que até ao momento da sua morte ainda continuava a utilizar as poupanças que obteve da sua condição de mayor e proprietário industrial. Tudo bem que teve uma ideia revolucionária para produzir peças industriais em grande quantidade e a baixo custo, mas como é que conseguiu sozinho construir todo um novo negócio com base nessa ideia, sem mais bases? Como é que não apareceu um burguês qualquer para lhe rachar a cabeça e ficar com a ideia? Suspeito.
Um outro ‘pormenor’ que me incomodou foi a súbita transformação de Cosette de uma rapariga vulgar para uma deusa da beleza em cerca de 9 meses, sem qualquer explicação. No volume 2, em que conhecemos a moça, Victor Hugo sempre a descreve como uma rapariga com poucos traços bonitos (feia, vá), e assim continua ao longo dos anos, mesmo quando já passeava com Valjean por Paris. Nessa altura já Marius a tinha observado, sem lhe ter despertado qualquer interesse. E de repente, do nada, Cosette aparece uns meros meses depois totalmente fresca, mais bela que as mais belas. Porquê, o que aconteceu?! Algum workshop de maquilhagem e de vestuário aconteceu na cidade, o quê? Bah, muitos podem considerar isto irrelevante, mas é mais um ‘pormenor’ que continua a fazer-me comichão.
Outro problema que vou apontar é o excesso de personagens. Bem, o problema talvez não seja o excesso de personagens, mas sim o tempo de descrição que se dá a cada uma, que não é proporcional à importância que as mesmas têm na história. Várias só voltam a ser referidas em cenas onde acabam por morrer ou por ficar feridos. Well, that is sad. Acabamos por não sentir grande empatia ou interesse naquilo que lhes acontecesse, porque não sentimos que chegámos a desenvolver uma qualquer relação com as personagens.
Pronto, acho que já acabei de apontar dedos. Como viram, não é um romance a que estejamos acostumados a ler, mas alguém esperava isso de ‘Les Misérables’? Para um clássico do século XIX, a escrita até é bastante fluída e fácil de acompanhar, ajudando ainda o facto de os capítulos serem, na generalidade, curtos (adoro capítulos curtos!). Se forem fãs de histórias concisas, que não se alongam e não se imiscuem com outras histórias oblíquas, não é uma leitura que recomende. Se ainda estão no início desta aventura que é a leitura dos clássicos, sou capaz de recomendar alguns mais leves, como “Os Três Mosqueteiros” ou “A volta ao mundo em 80 dias”. Por fim, se estiverem mesmo afim de ler a obra, já disse o que tinha a dizer. Têm uma leitura extensa pela frente mas garanto que no final se sentirão bem convosco próprios, quanto mais não seja pelo facto de poderem riscar mais um título da lista de clássicos a ler.