Há livros – e autores, no geral – de que tenho alguma dificuldade em falar por aqui porque acho que não tenho a eloquência suficiente para o fazer, o que quer que isso signifique. Saramago faz certamente parte desse grupo. O nosso único Nobel da Literatura, parte do currículo escolar de todos os portugueses, autor favorito de tantos leitores; como posso opinar sobre o “Memorial do Convento” sem parecer ou ignorante ou snob (ou ambos)? Não faço ideia mas vou tentar.
Entre mim e Saramago não houve amor à primeira vista, isto no meu 11º ano. Não só estava eu ainda muito verdinha em literatura portuguesa como o facto de andar preocupada com as notas que iam definir o meu percurso profissional me fizeram sempre encarar o Memorial mais como um afazer do que lazer. Dez anos volvidos e posso dizer que José Saramago é hoje um dos meus escritores preferidos – muito original, eu sei. Quando surgiu a oportunidade desta releitura no Clube de Leitura da biblioteca da minha cidade, fiquei muito entusiasmada.
Não vou mentir e dizer que não compreendo a dificuldade que muitos adolescentes têm com esta leitura. De todos os livros que já li do autor este foi aquele em que mais me custou entrar na história. Temos de desbravar cerca de cinquenta páginas para finalmente conhecer a Blimunda e mais umas quantas para finalmente sermos introduzidos ao criador da passarola, o padre Bartolomeu. E apesar de eu já me sentir relativamente à vontade com a prosa de Saramago, o “Memorial” faz-nos testar os nossos limites, tendo uma narrativa muito pautada por longas descrições de procissões e festividades com tantos termos específicos que só com o Priberam ao lado conseguiríamos acompanhar tudo. Não é, de todo, uma leitura descomplicada e se me perguntassem (ninguém perguntou) se é o ideal para ser ensinado na escola, teria de discordar.
A um lado do pátio espaçoso ficava um celeiro, ou abegoaria, ou adega, estando vazio não se podia saber que serventia fora a sua, pois para celeiro lhe faltavam tulhas, para abegoaria onde estariam as argolas, e adega não a há sem tonéis.
E, no entanto, não consigo não pensar nele como um livro praticamente perfeito. Alguns críticos poderão dizer que um defeito de Saramago é ser demasiado parcial nas suas narrativas; o que o autor pensa de uma pessoa ou instituição ou entidade raramente é descrito com subtileza no livro e não deixa realmente liberdade para o leitor fazer os seus julgamentos não enviesados. Eu percebo e chego mesmo a concordar, mas é exatamente essa parcialidade que me atrai e com que me regozijo quando leio as obras de Saramago. Mandar bitaites e tecer opiniões qualquer um o pode fazer, mas fazê-lo com qualidade, substância e humor é já um estatuto que só uns poucos atingem.
A princesa já não pensa nos homens que viu na estrada. Agora mesmo se lembrou de que, afinal, nunca foi a Mafra, que estranha coisa, constrói-se um convento porque nasceu Maria Bárbara, cumpre-se o voto porque Maria Bárbara nasceu, e Maria Bárbara não viu, não sabe , não tocou com o dedinho rechonchudo a primeira pedra, nem a segunda (…), e agora vai Maria Bárbara para Espanha, o convento é para si como um sonho sonhado (…).
Apesar de se chamar “Memorial do Convento”, não há um exaustivo detalhe sobre a edificação do monumento como eu supunha que haveria. E dou graças por isso porque se há descrições que eu leio na diagonal e que me assustam são as de arquitetura – por alguma razão o livro “Nossa Senhora de Paris” está em minha casa por ler há quase uma década e assim há-de continuar. Por isso fico muito satisfeita que o foco da história esteja no essencial, nas personagens caricatas e na escrita rica e inigualável.
Minha mãe, esta é a minha mulher, o nome dela é Blimunda de Jesus. Deveria isto bastar, dizer de alguém como se chama e esperar o resto da vida para sabem quem é, se alguma vez o saberemos, pois ser não é ter sido, ter sido não é será, mas outro é o costume, quem foram os seus pais, onde nasceu, que idade tem, e com isto se julga ficar a saber mais, e às vezes tudo.
Em suma, foi uma releitura como eu não esperava. Volto a frisar que não recomendo como primeiro incursão ao nosso Nobel mas é de qualquer modo uma leitura obrigatória que nos deixa mais intelectualmente valiosos e simplesmente bem dispostos. Não tenho nada de original para dizer mais desta obra a quem tantos elogios e dissertações já foram feitas, por isso fico-me por aqui. Leiam e pronto.