Sendo eu pessoa para ler cerca de 40 livros anualmente, não só é possível com é também bastante provável que me vá estreando com autores novos todos os anos. Como em tudo na vida, algumas estreias correm bem e outras nem por isso; felizmente, 2018 tem sido complacente para comigo, ignorando algumas excepções (curiosamente, apenas mulheres até agora), e por isso estou muito grata.
Para vos falar do título de hoje deixem-me recuar até ao não tão longínquo Abril de 2016, ainda na Idade das Trevas em que eu não possuía conta no Goodreads e questionava as minhas decisões de vida enquanto cursava o meu mestrado. Foi nesse mês que, aproveitando uma viagem de trabalho do meu namorado, rumei até ao Brasil durante duas semanas, onde tive a felicidade de ler pela primeira vez (e tudo numa jogada do acaso) um dos meus actuais autores preferidos: Stephen King!
Eu sei, eu sei, hoje em dia quase que é cliché ser-se fã do Stephen King, em Portugal e no mundo. Mas se o homem escreve bem, tem humor, idealiza cenários que conseguem ser simultaneamente estapafúrdios e geniais e ainda tem livros publicados que hão-de chegar para me entreter até à reforma, não vejo inconvenientes em tomá-lo como predilecto. Long live Stephen King!
Às vezes, morto é melhor… Quando os Creed se mudam para uma bonita casa antiga no Maine rural, tudo parece demasiado bom para ser verdade: pai médico cirurgião, mulher linda, filha pequena encantadora, adorável filho bebé — e agora uma casa idílica. Como família, eles são perfeitos, sem esquecer até o amigável gato. Mas os bosques vizinhos escondem uma verdade sangrenta – mais terrível do que a própria morte…. e horrivelmente mais poderosa. (Tradução gentilmente cedida por… mim!)
Publicado em 1983, Pet Sematary foi não só o primeiro livro que li do autor mas também um dos primeiros livros que li integralmente em inglês – um hábito que tenho mantido impreterivelmente no que toca aos livros do Stephen King. É ainda hoje o título que recomendo quando me perguntam por qual livro dele se deve começar; não sei se será o melhor em termos de qualidade, mas se foi bom o suficiente para mim, há-de ser também suficiente para muito boa gente.
Falemos da história. Louis é o patriarca de uma daquelas típicas famílias americanas que aparecem nos filmes de Hollywood e nos anúncios publicitários: pai com um bom trabalho para sustentar a família, a mulher linda que opta por não trabalhar e se dedicar à casa e as duas crianças encantadoras e adoráveis. E porque nenhuma família perfeita está completa sem um animal de estimação, temos ainda o gato, Winston Churchill. Este seria o momento em que eu questionaria a plausibilidade de alguém (especialmente um americano) escolher tal nome para um gato mas depois lembro-me que em criança chamei Nabucodonosor a um dos meus cães de peluche em homenagem a um rei da Babilónia, e portanto a minha credibilidade é pouca ou nenhuma.
Assim que se mudam para o estado do Maine (Maine! Que surpresa!), os Creed travam logo conhecimento com o velho casal vizinho que cedo lhes dá a conhecer as atracções turísticas da zona, com destaque para o Pet Sematary (traduzido literalmente seria algo como ‘Semitéreo dos Animais‘), um terreno no meio do mato onde crianças desde há várias gerações têm enterrado os seus animais de estimação. Histórias incríveis e místicas são contadas por aí sobre aquele ‘semitéreo’ mas Louis só começa a perceber o que se passa quando tem de enterrar o seu próprio Winston Churchill… e é a partir daí que tudo começa a descambar.
Não quero nem preciso de dizer mais. Apesar de não considerar que seja um enredo em que o leitor tenha dificuldade em discernir o que vai acontecer, ganha-se mais quanto menos se souber. O livro não é narrado na primeira pessoa mas estamos maioritariamente na cabeça do protagonista, o que significa que as pistas que Louis recebe nós recebemos também. É muito fácil para nós, num segundo, sentir empatia e compaixão pelo que o pobre homem está a passar e no segundo seguinte já só nos apetecer saltar para as páginas e gritar-lhe para estar quietinho onde está e não fazer o esterco que está para fazer. Pode parecer exasperante – e talvez seja um bocadinho – mas é igualmente instigante e entusiasmante de ler.
Algo que devem esperar dos livros do Stephen King é a existência de spoilers do próprio final no próprio livro. Mesmo quando tentamos manter alguma réstia de esperança em relação ao destino de certas personagens, há-que contar com o foreshadowing maroto que nos deixa logo alerta. Compreendo que para alguns leitores este seja um artifício ingrato, mas a mim traz-me um tipo de frustração saudável que eu gosto de sentir quando acho que já desenhei o final do livro todo na cabeça.
Louis Creed came to believe that the last really happy day of his life was March 24, 1984. The things that were to come (…) were still over seven weeks in the future, but looking over those seven weeks he found nothing which stood out with the same color. [p. 291]
E porque como falar de um livro do Stephen King sem mencionar a sua escrita seria como ir a Paris e não ver a Torre Eiffel (e já não digo subir porque 704 degraus não estão ao alcance de qualquer par de pernas), aqui deixo umas breves glosas: não sendo desnecessariamentepoético e pedante, é um estilo que também não cai no extremo oposto de ser pouco profundo ou demasiado directo. Alguns de vós já poderão ter ouvido opiniões menos positivas sobre os ‘devaneios’ e algumas descrições e cenas supérfluas (ou que assim parecem ser) mas, mais uma vez, considero isso mais qualidade do que defeito. Acontece que, às vezes, dá mais gosto e retira-se mais desses hiatos do que da história propriamente dita.
Louis stared at her, nonplussed. He more than half suspected that one of the things which had kept their marriage together (…) was their respect of the mystery – the half-grasped but never spoken idea that maybe (…) there was no such thing as marriage, no such thing as union, that each soul stood alone and ultimately defied rationality. And no matter how well you thought you knew your partner, you ocasionally ran into blank walls or fell into pits, (…) an attitude or belief which you had never suspected, one so peculiar that it seemed nearly psychotic. (…) And if you valued your marriage and your piece of mind, you tried to remember that anger at such a discovery was the province of fools who really believed it was possible for one mind to know another. [p. 57]
E, claro, não poderia deixar de mencionar as passagens humorísticas que são também presença constante nos livros do autor e que não é incomum surgirem em contextos mais lúgubres do enredo:
When you got into the bathtub, Oz got right in there too – Shower with a Friend. He was in the water you drank, the food you ate. Who’s out there? you howled (…) and it was his answer that came back: Don’t be afraid, it’s just me. Hi, howaya? You got cancer of the bowel, what a bummer, so solly, Cholly! Septicemia! Leukemia! Coronary thrombosis! Osteomyelitis! Hey-oh, let’s go! Junkie in a doorway with a knife. Big handfuls of pills, munch em up. (…) Hi folks, my name’s Oz the Gweat and Tewwible, but you can call me Oz if you want – hell, we’re old friends by now. [p. 510]
Por tudo isto e pouco mais, considero-me perante um livro fascinante. Não perfeito, e não merecedor de 5 estrelas, porque peca nos capítulos finais por apressar demasiado a narrativa e acabar por ser um pouco anti-climático. É um bocado ingrato termos de ler tanto build-up para uma coisa que é despachada em pouco mais de 20 páginas. Mas quanto a isto, tenho de vos avisar: habituem-se. Stephen King pode ser mestre a inventar ideias, mas finalizá-las de maneira satisfatória é uma arte que ainda não conseguiu desenvolver plenamente.
Mas mesmo não tendo o final mais brilhante, ‘Pet Sematary’ é um excelente livro para se ler em tardes de Outono – ou quando bem vos apetecer, na verdade. Uma boas páginas de terror que não desapontarão os fãs já assumidos e que dificilmente afastará aqueles que se estreiem com este título. Serei eternamente grata pelo dia em que entrei numa livraria do Brasil e este livro sorriu para mim. Deus sabe quantos autores não andam por aí a ser injustamente ignorados porque alguém teve uma má experiência com o primeiro livro que leu deles…
Por hoje me despeço com o hit que muitos de vocês poderão ter estado a trautear enquanto passavam os olhos por esta incrível review. A já extinta banda Ramones criou este single propositadamente para a adaptação cinematográfica de 1989, escrita pelo próprio Stephen King. Vejam o filme se vos interessar; eu fico-me pela rockalhada.