“Os Versículos Satânicos”, Salman Rushdie

Esta é provavelmente das obras mais “ambiciosas” que me propus a ler nos últimos tempos e certamente que só o fiz porque foi a escolha do mês do clube de leitura da biblioteca aqui da cidade. Mesmo quem não tenha lido este livro, publicado em 1988, terá pelo menos ouvido falar do autor que desde há anos tem visto a sua bibliografia ser alvo de críticas, a mais feroz a ter culminado num violento ataque ocorrido em 2022 que lhe roubou uma vista e o uso de uma das mãos. A mais infame das suas obras é precisamente “Os Versículos Satânicos” e conhecer o seu conteúdo poderá ajudar a desvendar o porquê de tanta polémica e escrutínio a que a mesma tem sido sujeita.

O livro, que podemos considerar ser em parte do género “realismo mágico“, é uma sequência de histórias não obviamente conectadas, alternando entre capítulos baseados na vida do profeta Maomé – o fundador do Islão – e um enredo contemporâneo onde dois homens indianos “sobrevivem” a uma explosão de um avião, tragédia que sem motivo aparente os faz reencarnar, cada um, numa entidade religiosa – um é o Arcanjo Gabriel e outro é Satanás, o literal Diabo. Eventualmente percebemos que as passagens que recontam cenas do Alcorão poderão ser na verdade visões de Gabriel, que na religião é considerado o único arcanjo com poder para transmitir a palavra de Deus ao profeta.

(…) a consciência – ou, se preferirem, a ideia louca – prestes a surgir no espírito de Gibreel Farishta, de ser nada mais nada menos do que um arcanjo com aparência humana, e não um arcanjo qualquer, mas o Anjo da Recitação, o mais celebrado (desde a queda de Shaitan) de todos os da sua estirpe.

Para nós portugueses, criados principalmente sob a alçada do catolicismo ou do ateísmo, não será imediatamente evidente o que de tão ofensivo poderá estar expresso na obra, embora o possamos imaginar. O mais premente será aquilo que dá o título à obra, os próprios versículos satânicos; reza a lenda que enquanto escrevia a primeira versão do Alcorão o profeta Maomé incluiu versos transmitidos pelo Mensageiro que faziam alusão a outras deidades que não o único e verdadeiro Alá. Hoje em dia, tal acontecimento é negado pelos seguidores da fé islâmica. Outras “profanações” da religião são ainda menos evidentes para leigos como eu que só tomam nota delas quando se debruçam a estudar a obra mais a fundo: utilização do nome derrogatório “Mahound” em vez de Maomé ou de Jahilia em vez de Meca; o “anjo Gabriel” ser uma estrela de cinema; o bordel da cidade cujas prostitutas se apresentam com os nomes das doze mulheres do profeta, etc. Pontualmente, existem passagens não tão subtis que parecem desaprovar crenças do islamismo:

Entre as palmeiras do oásis Gibreel aparecia ao Profeta e punha-se a despejar regras, regras, regras, até os fiéis só terem vontade de dizer que já chegava de revelações, disse Salman, regras para tudo e mais alguma coisa, se um homem se peida deve voltar o rosto para o lado do vento, e havia também uma regra sobre a mão a utilizar para limpar o rabo. Era como se nenhum aspecto da existência humana pudesse ser deixado ao acaso, livre. A revelação dizia aos fiéis quanto haviam de comer, com que profundidade haviam de dormir, que posições sexuais tinham recebido sanção divina, de forma que todos ficaram a saber que a sodomia e a posição dos missionários eram aprovadas pelo arcanjo, enquanto as figuras proibidas incluíam todas aquelas em que a fêmea ficava por cima. Gibreel fez ainda uma lista dos temas autorizados e interditos de conversa, e assinalou as partes do corpo que não podiam ser coçadas por muito insuportável que fosse a comichão sentida. Vetou o consumo de gambas (…) e exigiu que os animais fossem mortos lentamente, esvaindo-se em sangue (…).

O livro é muito rico em referências ao Islão e tenho a certeza (e pena) que grande parte me tenha passado ao lado, o que me leva a crer que com maior bagagem intelectual sobre o tema ir-me-ia divertir ainda mais com esta leitura. É como ter um muçulmano a ler “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” do Saramago: certamente poderá gostar da história mas sem conhecimento do Novo Testamento e de alguns evangelhos apócrifos, a experiência fica só pela metade. Esta é talvez a maior advertência que faço em relação ao livro: preparem-se para muitas passagens e nomes que vos vão parecer exageradamente complicados ou irrelevantes ou desconexos. Não é de todo uma narrativa fácil de seguir para quem estiver totalmente a leste da contextualização histórica, incluindo os capítulos contemporâneos.

O mais curioso no meio disto tudo é que Salmon Rushdie por mais de uma vez se referiu a esta obra como sendo uma homenagem à imigração, de Bombaim a Londres, mais do que uma encoberta crítica ao islamismo. O próprio autor nasceu na Índia e cedo emigrou para Inglaterra, parte de uma “diáspora” que já na altura foi mal recebida pelos britânicos. Na década de 80, Margaret Thatcher e o partido conservador governavam o país com punho de ferro e com políticas hostis para com os imigrantes das suas colónias ultramarinas. Por ter ele próprio passado por essas provações, Rushdie traz para a sua obra alguma dessa experiência na personificação do personagem do Diabo, Saladin, que por mais inglês que se tente tornar nunca consegue deixar de ser visto como um estrangeiro que não pertence ali.

É lamentável, mas não surpreendente, que um livro de tanta qualidade e riqueza cultural tenha ganho fama maioritariamente pelas proibições de publicação, acusações de blasfémia e pelos ataques ao autor (a quem chegou inclusive a ser endereçado uma fatwā pedindo a sua execução). Tudo quando uma das intenções originais seria não chocar os crentes mas sim reflectir sobre a identidade e a dualidade que sentem os povos migrantes repartidos entre a cultura de onde vêm e a cultura para onde vão, e as metamorfoses que essas mudanças implicam. É um livro bem mais autobiográfico do que se poderia pensar à primeira.

Mais poderia e deveria ser dito sobre esta obra e por gente mais competente e erudita do que eu. Literariamente falando, foi das narrativas mais difíceis que li nos últimos tempos por não ser dos textos mais fluídos de seguir, constantemente a ser entrecortado por episódios e observações religiosas e culturais que não se compreendem facilmente. Ainda assim, sei que foi dos melhores livros que li o ano passado e só espero de futuro conseguir aprender muito mais sobre o tema para um dia poder voltar a ele e conseguir, ou pelo menos tentar, absorver toda a mensagem e comentário que Rushdie tão corajosamente quis transmitir.

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