A desilusão que foi “Convenience Store Woman”

[Peço desde já desculpa pelo texto longo, às vezes dá-me para isto]

Eis um daqueles exemplos infelizes de livros cuja premissa parece instigar uma história profunda com a qual me espero relacionar mas que acabam por pecar ao abordar os temas apenas superficialmente e sem causar grande impacto (relembro que subjetividade é uma coisa que existe e que está sempre presente nor artigos deste blog).

Publicado em 2016 pela escritora japonesa Sayaka Murata e já traduzido em Portugal como “Uma Questão de Conveniência“, este pequeno romance contemporâneo acompanha em menos de 200 páginas parte da vida adulta de Keiko, uma mulher de 36 anos que é muito realizada e feliz a trabalhar em part-time numa loja de conveniência do Japão. Para além do dia-a-dia de trabalho em tal estabelecimento, a parte mais apelativa do livro é a própria personalidade da protagonista, que leva uma vida rotineira e sem quaisquer ambições pessoais ou profissionais, o que faz muita comichão aos seus conhecidos e familiares.

Essa era, de facto, a ideia que tenho visto ser partilhada sobre esta obra, como um ponto positivo: a inconformação e até a rebeldia de uma jovem mulher perante uma sociedade padronizada que está mal preparada para lidar com os “dissidentes” que ousam ser diferentes da norma. Keiko encontra-se nesse lote de gente. Desde sempre uma alma solitária e incompreendida pelos próximos, nunca sonhou alto nem desejou demais, o que deixa os outros perplexos, tendo em conta que são todos indivíduos que não fugiram da conduta correta da vida e que foram casando, procriando, comprando casas e aumentando os salários.

Acho que é muito fácil e válido muitos de nós nos relacionarmos com isto, principalmente das gerações mais recentes. Percursos que até há pouco tempo era tidos como dogmas – desde casamento antes dos trinta, o mesmo emprego estável durante toda a vida, a primeira casa e o primeiro bebé poucos anos depois do casamento, etc – têm vindo cada vez mais a ser reformulados. É certo que parte dessas reformulações são impostas por fatores externos (quem é que consegue comprar ou sequer arrendar uma casa na crise imobiliária actual?!) mas outras advêm da expansão de horizontes que se tem registado quer devido à globalização, à maior consciencialização do que é a liberdade individual ou a outro motivo qualquer. E posso falar por mim; nasci nos anos 90, os meus pais não são assim tão velhos e ainda hoje ficam preocupadíssimos quando lhes digo que vou mudar de emprego por melhoria de condições – no tempo deles só se deixava um emprego quando a pessoa era despedida ou se reformava. E também estou bem ciente da perseguição que é feita às jovens mulheres que ainda não se dignaram a arranjar um parceiro e um filho antes do relógio biológico entrar em fase decadente. Ou àqueles ignorantes que ousaram terminar o 12º ano sem saber o que queriam da vida e que ainda andam a experimentar cursos e graduações a meio dos 20 porque ainda não descobriram a sua vocação. Somos todos pecadores aos olhos de alguns membros da sociedade.

E se eu sei que isto é uma realidade no meu casulo privilegiado da classe média portuguesa, acredito que seja ainda mais prevalente em países mais normativos como é o Japão. E por isso mesmo esperava ler alguma reflexão e crítica social, por mais ténue que fosse, em “Convenience Store Woman” mas, ao invés, recebi apenas uma história muito parcamente desenvolvida e uma leitura, de forma geral, bem desagradável.

Keiko não é uma mulher “normal”. Não por não se querer casar ou subir a escada corporativa mas sim porque desde cedo na história é relatada a sua apatia e ignorância perante o comportamento emocional humano de forma desproporcional e não natural. Ela não compreende quando magoa ou é magoada, ofende ou é ofendida, goza ou agrada a outras pessoas; tudo o que ouve é interpretado literalmente e quase tudo o que faz, em idade mais adulta, é uma mímica do que vê os outros fazer (como falar, como vestir, como reagir, etc). Não sei se era intenção da autora escrever racionalmente uma protagonista autista ou mesmo psicopata (atenção que não sou médica e estou a usar estes termos de forma superficial) mas sendo ela como é rouba praticamente qualquer similaridade com a minha realidade e torna impossível ao leitor comum se relacionar com o seu percurso.

Compreendo o paralelo de que pessoas dissidentes possam ser vistas como malucas ou problemáticas mas a verdade é que, na sua maioria, são pessoas mentalmente funcionais que simplesmente optam por usar a sua coragem, liberdade e inteligência emocional para ser e agir “diferente”. Para mim, teria sido muito mais interessante acompanhar uma mulher consciente do incómodo que causa aos que estão ao seu redor ao invés de uma que vive permanentemente alheada.

Escolher a temática da inconformidade social dos jovens adultos e inseri-la num livro onde a protagonista aparenta ter uma condição onde conforto e rotina são de elevada importância (do pouco que sei sobre o assunto) deixou-me muito confusa. Com estes dois elementos a autora poderia ter escrito duas histórias completamente diferentes, interessantes e bem mais convincentes do que esta mistura das duas. Claramente deve ter havido alguma intenção de crítica social mas a mim passou-me ao lado. Por mais que reflita continuo sem conseguir tirar grande prazer desta leitura e quanto mais penso no livro mais desorientada fico. Por isso, e tendo em conta a popularidade que a obra teve, o que posso dizer é simplesmente: “não percebi a ideia”.


2⭐ (Goodreads)

Keiko foi sempre estranha – e os pais perguntam-se onde encaixará ela no mundo real. Por isso, quando a rapariga resolve ir trabalhar para uma loja de conveniência, a notícia é recebida com entusiasmo, até porque na loja ela encontra um mundo bastante previsível, que domina com a ajuda de um manual e copiando os colegas até na forma de falar.

Mas aos 36 anos é ainda na mesma loja de conveniência que trabalha, e além disso nunca teve um namorado, frustrando as expectativas da sociedade… Embora Keiko não se importe com isso, sabe que a família e os amigos estão mais ou menos desesperados. Um dia, porém, é contratado para a loja um rapaz com o qual Keiko tem algumas afinidades. Não será então aconselhável para ambos um relacionamento?

1 Comment

  1. Parece interessante, acho que vou levar a dica!

    Bjxxx
    Ontem é só Memória | Facebook | Instagram | Youtube

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *