A Desonra de D. Afonso VI – um livro que merece mais atenção

Não compreendo por que é que deixo passar tanto tempo entre livros de romance histórico, o meu género literário preferido; por norma, são sempre leituras que adoro. Quanto ao “A desonra de D. Afonso VI”, não sei precisar quando é que me veio parar às estantes nem porquê. As poucas resenhas que tem no Goodreads não são particularmente elogiosas e por isso duvido que tenha sido influência de alguém. Provavelmente terá sido um palpite meu e, felizmente, um palpite certeiro.

D. Afonso VI não me era totalmente desconhecido; sabia que tinha tido um reinado curto devido a uma doença que o teria deixado debilitado tanto física como, principalmente, mentalmente, o que o tornava pernicioso enquanto soberano de Portugal. Sabia também que não era suposto Afonso vir a ser rei uma vez que antes de si vinha o primogénito D. Teodósio, morto precocemente quando jovem adulto – mais uma vez a famosa “Maldição dos Bragança” a entrar em ação (estranho pensar que poderíamos ter tido um rei D. Teodósio…).

Alteza, el-rei sofre de uma fraqueza interior tão enfermiça que não lhe permite exteriorizar um pensamento razoável – (…) a resposta que vos daremos, submetida a profundas observações, é definitiva: el-rei é mentecapto e impotente.

Não é explicado no livro (e se calhar nunca chegaremos a saber) que febres foram aquelas que incapacitaram de tal forma o jovem príncipe. O que é certo é que o garoto nunca mais foi o mesmo. E se um rei fisicamente débil é bem tolerável, um mentecapto, por outro lado, já é motivo de preocupação para a nação. É que para além de ser boçal e incapaz, Afonso VI demonstrava ainda pontuais traços de malvadez e crueldade que tornam algumas passagens do livro difíceis de digerir.

Assim que obrigaram o bicho cornudo a entrar na jaula, o leão, por temor ou por estranhar, encostou-se a um canto, ficando a contemplar o animal (…). Para desalento do rei e das “patrulhas”, o touro manisfestou as mesmas dúvidas do leão, quedando-se cada um no seu canto (…).
– Deitemos fogo à jaula – anunciou um dos energúmenos.
O boi, logo que o leão caiu sobre ele, lançou-se contra a jaula, até lhe abrir um buraco e se sumir na noite escura. Menos sorte teve o leão. A juba começou a arder, o bicho, aflito, não reconheceu o caminho da liberdade, ardendo num braseiro ateado por gente com menos tino do que ele. E como el-rei e os seus farsantes se alegravam naquela orgia iniciática.

Um aspeto da narrativa que poderá ostracizar alguns leitores é a perspetiva sob que é contada. Nesta obra temos um narrador a falar na primeira pessoa, um fidalgo anónimo, que dialoga com um capitão também anónimo, isto já no reinado de D. Pedro II, relatando anacronicamente a ascensão e queda do rei Afonso VI, incluindo a sua clausura e morte. É de facto uma estrutura que nos confunde inicialmente mas, no meu caso, gradualmente se transformou em algo mais fluído e simples de acompanhar. Não foi difícil de ler, mas aproveito para reclamar de autores que escolhem estes formatos de “desbobinar de memórias” como forma de relatar a história – acho muito irrealista. Eu nem me consigo lembrar do que conversei com a minha irmã da última vez que a vi (ontem) e essa gente consegue relatar ao detalhe a vida (com direito a diálogos e tudo!) dos seus últimos vinte anos? Poupem-me.

“A desonra de D. Afonso VI” é, de facto, um livro muito rico em pormenores históricos, desde personagens a episódios, todos eles muito bem referenciados na bibliografia, o que demonstra real cuidado do escritor em estudar as fontes. No final temos ainda um conjunto de árvores genealógicas e tabelas cronológicas que são ótimos auxiliares de leitura neste livros e dos quais muito tirei partido. Algumas pessoas poderão achar o livro demasiado aborrecido mas o que eu prezo nestes romances é exatamente o detalhe e rigor histórico; caso contrário, embarcaria antes em ler romances de época.

Então, volto a dizer: por que razão destituíram um rei vitorioso? A ambição de D. Pedro, a traição da rainha e a avidez dos grandes nobres acabariam por afastá-lo do trono. Por isso, agora, em vez de perguntar, respondo: a meu ver, não havia razão para humilharem tanto “O Vitorioso”.

Uma muito agradável surpresa que, obviamente, só recomendo aos amantes da História de Portugal que estejam abertos a um manuscrito mais denso e menos romântico. Felizmente, Jorge Sousa Correia conta com mais livros publicados e resta-me agora deitar-lhes a mão. Estou particularmente curiosa com “O Mistério do Infante Santo” e “A Traição de D. Manuel I“.


4 ⭐ (Goodreads)

D. Afonso VI não era para ser rei. Precedia-o um irmão mais velho, D. Teodósio, que não resistiu à doença, deixando o reino para o irmão, cujas deficiências físicas e mentais eram evidentes.
É este reinado, controverso e conturbado, que encontramos no novo livro de Jorge Sousa Correia, autor de vários romances históricos sobre grandes reis da nossa História.

D. Afonso VI foi aclamado rei após a morte de D. João IV, mas só reinaria a partir de 1662, depois de a mãe, D. Luísa de Gusmão, deixar a regência do reino. O rei foi acusado de impotência pela mulher, esposa impúdica e adúltera que, dando as mãos a D. Pedro, irmão desleal e ambicioso, arrancou da cabeça do Rei a coroa para colocá-la na cabeça do Infante.

Mas houve mais, e este acabaria por ser acusado dos piores pecados num julgamento orquestrado pela rainha, pelos jesuítas e pelo poderoso duque de Cadaval. Depois das inclinações vis, os gostos obscenos, as fúrias violentas, ficou a D. Afonso VI a mansidão e a loucura obediente, até que uma qualquer decisão o fizesse desaparecer para sempre. Esse dia chegaria na forma de desterro.

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