Leituras #9 – Admirável Mundo Novo – Aldous Huxley

Ficha do Goodreads AQUI

Venha quem vier, não há quem me convença de que há uma época melhor do que o último trimestre do ano. Regresso às aulas, Halloween, Pré-Natal, Natal, é o que se queira. As montras e as lojas têm sempre coisinhas engraçadas e brilhantes e, melhor do que tudo isto, fica frio! O abençoado frio que me deixa, finalmente, ir buscar os casaquinhos quentes e os sacos de água quente para dormirem comigo. O mesmo frio que me deixa os dedos congelados quando estou a tentar ler um livro na sala cá de casa mas, hey, pormenores!

Em Portugal o Halloween não é uma tradição tão presente como é, por exemplo, nos Estados Unidos, mas a pouco e pouco, talvez por falta de originalidade, a gente cá vai fazendo crescer os ‘trick-or-treat‘, as abóboras acesas e os reapers e fantasmas. E já que estamos a mencionar o Halloween – meramente devido ao acaso e não ao facto de me dar jeito falar dele para poder introduzir o livro – o que é que vos assusta mais? A morte? O falhar? O sofrimento crónico? A solidão? Se calhar todos os anteriores e mais uns quantos. Permitam-me acrescentar à lista mais um medo recente que tem crescido em mim ao longo dos últimos anos: o medo de viver numa farsa e numa realidade fabricada e opressiva. Estejam à vontade para culpar as distopias como o Brave New World por isso.

Todos, em algum momento da nossa vida, demos por nós a ser filósofos por um dia questionando-nos sobre o que é de facto a moralidade, a felicidade, a liberdade e todos esses ‘ades‘ que tão bem conhecemos e que , provavelmente tão pouco compreendemos.

Mesmo ignorando o hype enaltecido que se tem gerado sobre certos tópicos como a inteligência artificial e o domínio dos robots, é inegável o progresso que se tem alcançado em tão pouco tempo nas áreas das tecnologias e biotecnologias. É um facto que tão cedo não seremos capazes de criar dinossauros como no Jurassic Park ou criar assistentes tão inteligentes como o HAL 9000 do Space Odyssey, mas é também verdade que o último século nos mostrou a rapidez com que os paradigmas do mundo se podem alterar. Foram precisos cerca de 35 anos para 1/4 dos americanos começar a usar o telefone; 26 anos para a televisão e apenas 7 anos para a Internet (ver relatório completo aqui). Mesmo tendo em conta que estes valores estão também relacionados com a facilidade de acesso aos serviços e com o aumento da população ao longo do tempo, a tecnologia nunca evoluiu tão depressa como agora. Quantos mais anos teremos de esperar até que táxis se conduzam sozinhos ou que robots realizem as nossas tarefas domésticas mais básicas?

Também as biotecnologias e a engenharia genética cresceram tanto em resultados como em importância nos últimos 60 anos. Manipulações e recombinações de genótipos têm sido estudadas e aplicadas em diversas áreas, apesar das acusações anti-natureza de que são alvo. Já é prática recorrente hoje em dia criar plantas resistentes a doenças e pragas, alterar a qualidade do leite dos animais mamíferos, utilizar bactérias e outros microorganismos para produzirem substâncias como a insulina e estudar a progressão de doenças e anomalias sem a necessidade de utilizar cobaias humanas (obrigado ratinhos!).

É praticamente impossível mencionar estes assuntos sem se ser empurrado para questões de moralidade e ética. Quem somos nós para interferir com o andamento da Natureza? É correcto utilizar o sofrimento de outros seres vivos para nosso futuro proveito? É correcto manipular embriões com possíveis doenças hereditárias antes de os implantar no útero? E manipulá-los para que sejam do sexo que os pais preferem? Ou para que tenham uns olhos daquele verde maravilhoso? Onde se traça a linha entre o que é moral e o que não é? Afinal, está certo ou errado organizar uma jantarada no Panteão Nacional?

Se queremos falar de éticas, falemos então do livro em questão. ‘Admirável Mundo Novo‘ apresenta-nos uma alternativa aos dogmas com que convivemos actualmente onde um governo totalitarista controla a sociedade através da utilização da ciência e da tecnologia. Há mesmo quem considere o romance como uma utopia porque, de forma geral, a sociedade futurista que é nele descrita parece ideal; ninguém vive descontente com o seu trabalho ou invejoso do colega do lado porque todos os indivíduos são condicionados desde o nascimento a gostar da função que estão programados para desempenhar; ninguém se sente só porque “um pertence a todos” e ideias de casamento e monogamia são inexistentes; ninguém tem preocupações porque existe a soma, a droga que é distribuída pela população para deixar uma pessoa num estado alucinogéno e sedado; ninguém vive com medo do desconhecido porque religiões e misticismos não existem, crê-se apenas naquilo que é tangível. A tecnologia e o pragmatismo são os alvos de culto desta nova gente.

 
[Fonte: https://www.shmoop.com/brave-new-world/lenina-crowne.html] 
A sociedade em ‘Brave New World‘ vive naquilo que considera felicidade porque é a única definição do termo que conhecem e que lhes é incutida. Problemáticas como a morte, doença, revolta, guerra, ou violência são temas que ou simplesmente não existem porque nunca foram ensinados ou com que se lida de forma diferente da que conhecemos. Conceitos tão mundanos para nós como “família”, “pai” ou “mãe” são tabus na sociedade; seres humanos são concebidos e clonados em laboratórios genéticos devidamente preparados para seleccionar embriões e os modelar de acordo com a classe que virão representar, desde os bonitos e inteligentes Alfa aos atrofiados e limitados Epsilons. Seres humanos não são programados para pensar, são programados para existir.

[Fonte: https://infograph.venngage.com/p/202535/brave-new-world-vs-the-contemporary-society-by-james-wang]
À semelhança do “1984” de George Orwell, ‘Brave New World‘, publicado em 1932, surge numa altura onde a Europa e o mundo em geral estão a mudar a sua face política, económica e social. Na primeira metade do século XX, ainda o império russo estava em reestruturação, os partidos de extrema direita estavam a ganhar popularidade no Velho Continente e as consequências do crash da bolsa de NY de 1929 estavam a fazer-se sentir no outro lado do Atlântico, com desemprego e fome a crescer diariamente. Face à deterioração das condições de vida no geral e a outras frustrações resultantes da Primeira Grande Guerra, os regimes democráticos foram sendo desacreditados e a populaça voltou-se para os que prometiam revolução e esperança numa vida melhor. Huxley cresceu nessa mesma Europa e foi nela que se inspirou para escrever esta crítica ao totalitarismo e a regimes opressivos. Enquanto que o regime em ‘1984’ se baseava em vigilância constante e na violência e na força, ‘Brave New World’ opta pela via de moldar as mentes dos indivíduos desde a nascença e de manter as pessoas ocupadas o máximo possível com actividades que as impeçam sequer de pensar.
As nossas objecções a este mundo aparentemente perfeito, enquanto leitores contemporâneos, estão também presentes no livro, nas personagens do Bernard, do Helmholtz e, claro, do selvagem John. Cada um à sua maneira e com as suas razões, os três homens partilham o mesmo desagrado com a falta de incentivo de ideias e de interesses originais que é cultivada na sociedade. No nosso conceito actual de felicidade podemos incluir, sim, o desejo sexual ou simplesmente o desejo de amar, o lazer e até o consumo de algumas substâncias que nos alterem o estado de espírito, desde o álcool até às drogas mais recreativas. Mas há, para além disso tudo, um outro conceito que já tomamos por garantido: a liberdade individual para pensar, acreditar e construir a nossa própria definição de felicidade. Quando comparada com a sociedade de George Orwell, a de Huxley poderá parecer mais apelativa e desejável (e em certos aspectos é, de facto) mas não nos deixemos enganar. A vida individual é anulada pela vida colectiva, os ideais são forçados e as alternativas são oprimidas.

Não quero desvendar muito mais da história em si, até porque é relativamente curta. Não estamos perante um livro de acção ou de aventura, apenas uma colectânea de ideias do que um homem em 1932 imaginava que seria o futuro. Se Jules Verne é considerado por muitos como o pai da ficção científica, depois de ter apresentado nas suas obras invenções como o submarino ou os telejornais, Aldous Huxley deveria ser considerado o padrasto. Como já mencionado, a engenharia genética alcança novas metas a cada ano e já é bem comum fazer-se uso de substâncias como LSD ou Prozac para atenuar a sensação de sofrimento ou de estados de espírito menos prazerosos.

Brave New World‘ é claramente um ‘product of its times‘, uma reflexão tendenciosa de um homem a sofrer os medos e preocupações que advinham do panorama europeu do início do século XX. Huxley baseou-se em problemas que começaram a surgir na época para prever os efeitos (exagerados) que teriam no futuro; por exemplo, a sobrepopulação chegaria a um nível tão crítico que só a existência de um poder totalitário seria capaz de resolver a situação através do controlo da reprodução, ou o aumento das reformas feministas e das liberdades sexuais que se começavam a exprimir na altura levariam a um ponto em que a promiscuidade e orgias semanais se tornavam o prato do dia.

[Fonte: https://www.shmoop.com/brave-new-world/summary.html]

Para concluir; ‘Brave New World‘ é mais do que uma simples distopia. Não se trata de andar a contar os dias até que termos como ‘família’ ou ‘Deus’ sejam obliterados, até que seja imposta uma idade limite para morrer ou mesmo até que a natalidade passe a ser severamente controlada. Mais do que fazer-nos olhar para quanta da tecnologia que Huxley previu existe actualmente, ‘Brave New World‘ serve para reflectirmos sobre o uso que queremos dar a essas mesmas invenções.
Até que ponto queremos controlar a evolução da nossa espécie na Terra e até que ponto é que faz sentido deixá-la entregue ao arbitrário? De quanta da nossa individualidade estamos dispostos a abdicar em prol da estabilidade social? É preferível reprimirmos os sentimentos que nos trazem algum desconforto e ficar só com os bons ou simplesmente ‘viver a vida’ com tudo a que temos direito? ‘Podemos’ é sinal que ‘devemos’?

Perguntas? Há muitas. Respostas? Há menos. Recomendações? Só uma: leiam este livro por favor

Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o autêntico perigo, quero a liberdade, quero a bondade. Quero o pecado. […] Reclamo o direito de ser infeliz. Sem falar no direito de envelhecer, de ficar feio e impotente; no direito de ter sífilis e cancro; no direito de não ter o que comer; no direito de ter piolhos; no direito de viver no temor constante do que poderá acontecer amanhã; no direito de ser torturado por indizíveis dores de todas as espécies.         – John Selvagem

4 Comments

  1. li este livro em 2012, mais ou menos pela mesma altura em que tinha lido o The Handmaid's Tale, que está super na moda agora. Já tinha lido 1984. Este assustou-me talvez mais que os outros dois (embora não tenha gostado tanto deste como dos outros dois), porque me parece mais real, mais plausível. a alienação total da sociedade em prol de entretenimento fácil, sexo drogas etc etc, tanto que é mais plausível vermos nós programas de televisão intitulados Big Brother do que o Big Brother do Orwell nos estar a ver…

    uma distopia que li recentemente e que me tocou ainda mais que estas três (pior – não é considerada distopia): It Can't Happen Here, de Sinclair Lewis. tenho review relativamente recente no meu blog, se quiseres. a Leya acabou de editar em português porque está absurdamente real e é um livro que foi "recuperado" do esquecimento por tratar de um déspota popularista que subiu ao poder nos EUA…

    PS – se ainda não leste o livro do Jurassic Park, já que mencionas aí a história – recomendo 🙂

  2. Sim, concordo que esta é uma distopia mais verosímil do que o 1984! Apesar disso gostei mais de ler o 1984, como disseste, este parece uma história mais 'à pressa', gostava de ter visto mais desenvolvimentos. Daí 'só' as 4 estrelas 🙂

    Fui ver a tua opinião. Não conhecia esse livro, mas já está na wishlist, parece mesmo o tipo de livro de que vou gostar. Interessante como estas distopias foram todas escritas na mesma época, da ascensão do fascismo na Europa. Quando olhamos agora para trás é difícil acreditar que certas coisas aconteceram, and yet, they did. O que nos garante que coisas iguais ou piores não se voltam a repetir?

    Bem, em dois dias já me recomendaste/mencionaste 3 livros – Monte Cristo, 'It Can't Happen Here' e o 'Jurassic Park' – a wishlist não pára de crescer! x) Fico muito agradecida 😀

  3. Oh, desde já muito obrigada 😀 fico muito feliz por as minhas opiniões e recomendações serem levadas em consideração, especialmente por parte de alguém que na verdade não me conhece 🙂

    Sim, percebo a pressa – também achei um pouco "frio" em partes, o 1984 tinha mais vida, mais humanidade – mas também suponho que era o objectivo, de alguma maneira.

    Sim, é verdade – muitos dos livros surgiram na mesma altura. Esse do Sinclair Lewis é baseado em parte na ascensão do Hitler ao poder, em parte num candidato democrata nos EUA chamado Huey Long. E um pouco anterior a todos esses livros é o "We" do Yevgeny Zamyatin queeee, atenção, nunca li! Mas quero 🙂

  4. De nada! Eu acompanho blogs e canais literários precisamente para descobrir vícios novos :p

    Esse "We" vem publicitado na minha edição do 'Brave New World' como o livro que inspirou o 1984. Estou a gostar muito de ler distopias. O próximo que vou ler é um bocadiinho mais light :p é o 'Divergente' , da Veronica Roth. De vez em quando também gosto de ler coisas mais leves :b

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