Este é um policial que dispensa apresentações. Não só é das obras mais conhecidas de Agatha Christie como é também o livro de mistério mais vendido no mundo, tendo já ultrapassado as 100 milhões de cópias vendidas. Para além disso, o seu título esteve em tempos envolvido em polémica (a própria autora já foi alvo de tentativas de cancelamento por razões relacionadas) , e o seu talvez seja um dos poucos casos no mundo em que a reedição e reescrita do material original faça algum sentido aos meus olhos. Mas para falar nisso precisamos primeiro de falar da sinopse.
“No início, eram dez”, também já publicado sob os nomes “As dez figuras negras” ou “E não sobrou nenhum” é um livro relativamente curto onde acompanhamos durante três dias dez pessoas que são convidadas por um misterioso anfitrião para a Ilha do Soldado, uma ilha remota no meio do mar inglês. Embora nenhum dos personagens se conheça de antemão, a estadia procede tranquilamente até que alguns deles começam a aparecer mortos de diversas maneiras e feitios e de acordo com uma lengalenga infantil que cada inquilino encontra no seu quarto:
Dez soldadinhos foram jantar;
Um engasgou-se e sobraram nove.
Nove soldadinhos deitaram-se muito tarde;
Um dormiu de mais e sobraram oito.
Oito soldadinhos foram viajar pelo Devon;
Um disse que por lá ficava e sobraram sete.
Sete soldadinhos foram cortar lenha;
Um cortou-se em dois e sobraram seis.
Seis soldadinhos brincaram com uma colmeia;
Um abelhão ferrou um e sobraram cinco.
Cinco soldadinhos seguiram a advocacia;
Um foi para o Supremo Tribunal e sobraram quatro.
Quatro soldadinhos foram para o mar;
Um caiu no anzol e sobraram três.
Três soldadinhos andavam pelo jardim zoológico;
Um levou um abraço de um urso e sobraram dois.
Dois soldadinhos sentaram-se ao sol;
Um deles ficou assado e sobrou um.
Um soldadinho ficou completamente só;
Foi e enforcou-se e não sobrou nenhum.
Eis a parte interessante: quando foi publicado em 1939 o livro foi intitulado “Ten Little Niggers“ em alusão a um dos adereços de decoração da casa, um conjunto de dez figuras negras que vão desaparecendo à medida que os habitantes vão perecendo. Não só isso como a própria ilha se chamava “Nigger Island” e a lengalenga em vez de soldados falava de, adivinharam, “pretinhos”. Embora nigger não tivesse a mesma conotação negativa no Reino Unido que tinha nos Estados Unidos, as editoras britânicas acabaram por renomear o livro em 1985 para outras fórmulas menos insultuosas, as mais conhecidas sendo “Ten Little Indians” (esta também desaparecida entretanto) e “And then there were none“, o último verso da lengalenga na língua original. Versões portuguesas obviamente que também adaptaram o conteúdo para remover o conteúdo racista e substituir pela versão inócua dos soldadinhos, uma alteração que acho que todos compreendemos e agradecemos. Por curiosidade, deixo aqui um vídeo com a ideia original, para quem estiver interessado em conhecer. Não tenho interesse em problematizar questões que estão há muito resolvidas, acho apenas genuinamente fascinante conhecer estes detalhes por trás de clássicos como este.
Quanto à história em si não posso adiantar muito mais, de certa forma a sinopse já é bastante auto-explicativa e intrigante. A própria Agatha Christie nomeou esta obra como a que lhe custou mais a escrever e compreende-se o porquê, para uma premissa tão original a fasquia fica demasiado elevada para uma resolução minimamente credível e ao mesmo tempo surpreendente. Ao longo do livro vamos desenvolvendo as nossas teorias mas a autora antecipa-se e a cada nova morte corta-nos o raciocínio e faz-nos voltar à estaca zero, o que num livro deste género é o mais desejado, na minha opinião.
A conclusão é satisfatória, não vou dizer que é impossível de adivinhar porque a certa altura todas as hipóteses serão colocadas na mesa, e também não posso dizer que seja brilhante; se calhar até faz menos sentido quanto mais reflectimos sobre ela. Por isso, não pensem demasiado sobre o assunto, é o meu conselho. É um excelente mistério não só pela premissa como pelos labirintos por onde leva o leitor e mesmo em relação ao final, será certamente um dos pioneiros da ideia neste género literário. Provavelmente estarei a ser muito condescendente para com um livro que para muitos talvez não passe de medíocre, posso concedê-lo, mas ainda assim acho que se são fãs do género, da autora ou de livros no geral, este é um clássico leve e intemporal que não posso deixar de recomendar.
Gostei bastante deste livro 🙂
Não ficou dos meus preferidos, mas é praticamente um clássico! 🙂