Mesmo sendo eu uma pessoa que sempre gostou de ler, pelo menos desde que tenho memória, também eu tenho os meus traumas literários. Durante o secundário nunca fiz batota, isto é, nunca recorri somente aos resumos das obras obrigatórias em vez de ler o integral, por muito que me custasse. E “Os Maias” custaram-me, tenho de confessar. De certa forma “O Memorial do Convento” também não me fascinou na altura e, pasmem, hoje em dia José Saramago é dos meus autores preferidos (leiam aqui uma opinião da minha releitura d’O Memorial). E por isso mesmo achei que Eça de Queirós também merecia a oportunidade de tentar passar pelo mesmo arco de redenção.
Talvez o melhor escritor realista português de sempre, Eça de Queiroz viveu no século XIX e “O Crime do Padre Amaro” foi o seu primeiro romance a solo, publicado em 1875. Mesmo quem vive debaixo de uma pedra já ouviu falar certamente da infame história do jovem padre Amaro e a sua paixão carnal e ilícita com a bela e devota Amélia. Menos estarão familiarizados, talvez, com o desfecho da obra, desfecho esse que eu não esperava quando comecei a ler e que não irei revelar aqui, na esperança de que a curiosidade vos incite ainda mais a pegar nela.
O livro é um retrato contemporâneo da época, uma narrativa passada na década de 1870 onde personagens e acções representam de forma algo exagerada – ou talvez não – os costumes portugueses de então. Sendo uma das primeiras obras da corrente do realismo no país, “O Crime do Padre Amaro” veio interromper o idealismo romântico na literatura em prol de uma visão mais crítica da sociedade. Apesar de ter sido polémico e condenado pelo clero – nem outra coisa se esperava – foi um livro que, por outro lado, teve uma muito boa recepção pelos críticos e leitores da altura.
Não surpreendentemente, em finais do século XIX Portugal era um país atrasado quando comparado ao resto da Europa, onde outros países fruíam ao tirar partido das consequências da Segunda Revolução Industrial e das descobertas científicas de Darwin, Marx e outros pensadores da época. Ainda que com algumas vozes fervorosas do progressismo aqui e ali, Portugal mantinha-se estagnado principalmente devido a âncoras conservadoras ditadas pela Igreja Católica. Por isso é que a instituição é tão atormentada e mal tratada no romance de Eça, não apenas com a representação da quebra do celibato (pecado cometido pelo protagonista mas não só) mas também dos pecados da gula, corrupção e engodo das massas para apropriação material ou simplesmente moral. O autor não é inteiramente carrasco e na personagem do Abade Ferrão concede talvez algum crédito e virtude aos membros clericais que de facto vivem em abnegação e rigor, mas várias outras personagens deixam transparecer os verdadeiros sentimentos do autor pela generalidade da classe.
Em que consiste a educação dum sacerdote? Primo: em o preparar para o celibato e para a virgindade; isto é, para a supressão violenta dos sentimentos mais naturais. Secundo: em evitar todo o conhecimento e toda a ideia que seja capaz de abalar a fé católica; isto é, a supressão forçada do espírito de indagação e de exame, portanto de toda a ciência real e humana…
Como já referi inúmeras vezes, não sou crítica literária ou erudita de literatura e para análises mais académicas e completas do livro com certeza encontrarão melhores recursos do que este. Se falei de alguma teoria nos parágrafos anteriores é porque acho de facto relevante mencionar algum contexto quando lemos as nossas obras clássicas. Concede-lhes talvez até mais riqueza. De resto, “O Crime do Padre Amaro” lê-se muito bem, não é enfadonho nem carregado de vocábulos pedantes, e a constante procissão de hipocrisia e devassidão dá-nos o alento para continuar a ler e aguardar que algum tipo de justiça seja feita em relação a tais escândalos. Justiça essa que pode ou não chegar.
Mesmo sendo de leitura fluída, ajudou-me ter já algum conhecimento da história e das personagens, bem como do ambiente de Leiria naquela década. Recomendo muito verem a adaptação da RTP protagonizada por Bárbara Branco e José Condessa (que curiosamente na altura eram um casal na vida real), uma série muito realista ao texto original (na maior parte) e muito bem representada e caracterizada. Com um elenco de luxo, como já é habitual. Claro que o livro é superior e acrescenta sempre muito mais, mas se não tiverem ficado convencidos dêem pelo menos uma hipótese a esta muito boa produção nacional.

Amaro Vieira, recém-chegado a Leiria, conhece Amélia Caminha, filha da dona da pensão onde fica hospedado. Apaixonam-se. Nada de invulgar teria esta história, não fosse Amaro um padre atraído pela transgressão e pela vertigem do amor proibido. Mais ainda: ele não teme a reprovação dos outros membros do clero, mergulhados também numa rede de perversa ocultação e fingimento. Num meio provinciano em que as aparências ocultam a realidade, Eça de Queiroz desvenda a hipocrisia das suas personagens, numa devastadora e impiedosa crítica à decadência moral do clero.
Em tempos, um livro censurado e impregnado de um erotismo esconso a roçar o sórdido, o primeiro romance de Eça de Queiroz, que contou com três versões ao longo da vida do autor, é aqui cuidadosamente fixado de acordo com a versão de 1889 – a última.