The Help – muito mais do que um livro polémico

Uma rápida incursão pelas críticas negativas do Goodreads a este livro coloca-nos logo a par do elefante na sala: o facto de “The Help” (“As Serviçais” em português) ser uma obra escrita por uma mulher branca e onde as protagonistas são criadas negras, serviçais de famílias brancas no infame Mississipi da década de sessenta. Já muito se discorreu na Internet e demais sobre esta temática, com argumentos de ambos os lados, e o meu parecer pouco há-de interessar volvidos dezasseis anos(!) desde a publicação do livro, mas eu partilho na mesma.

A minha opinião tem variado ao longo dos anos e actualmente sou muito relaxada em relação a isto: as pessoas que escrevam sobre o que elas querem escrever e como querem escrever. Restringir o tema ou a voz de uma obra ao círculo em que o autor se insere é castrar a liberdade criativa e ignorar visões exteriores, o que pode levar ao surgimento de câmaras de eco onde apenas certos grupos de pessoas podem falar sobre determinados assuntos. E se assim fosse, nunca teríamos obras como “E Tudo o Vento Levou”, “Madame Bovary” ou “Brokeback Mountain”. A diversidade e experiência humana é demasiado vasta para ser estudada apenas de um ponto de vista. Claro que pontualmente surgirão livros e autores mal-intencionados com ideias de doutrinação e “branqueamento” (no pun intended) mas somos seres inteligentes que conseguem discernir entre esses exemplos e autoras como Kathryn Stockett que só querem escrever uma história com bons fundos. O facto de se ter tornado um best-seller traz a feliz consequência de pôr milhares de pessoas a ler e reflectir sobre o modo de vida da comunidade negra na época e há valor nisso que não podemos descurar. O que não significa que tais livros estejam isentos de crítica, claro.

Se para além de castrar autores quiséssemos castrar também os críticos de livros, nunca teríamos pérolas destas. Mais exemplos em https://www.reddit.com/r/BadReads/

Portanto, polémicas à parte, de que fala afinal a obra? Estamos no ano de 1962 em Jackson, Mississipi. A escravatura já foi oficialmente abolida e Rosa Parks já cimentou o seu nome na cultura americana ao recusar-se a ceder o seu lugar a um homem branco num autocarro. A opressão dos negros pode já não estar no seu pior mas está ainda longe de ser boa, principalmente naquele que é o estado mais racista do país. Os negros ainda vivem em bairros segregados e não partilham serviços como médicos e dentistas com os brancos. Os empregos que lhes são permitidos ou são destinados apenas a servir os da mesma raça ou são de subserviência aos brancos. É nessa perspectiva que acompanhamos a protagonista, Aibeleen, e Mimi, duas mulheres que trabalham como amas e criadas de abastadas famílias.

Acompanhamos ainda uma terceira mulher, Skeeter, no outro extremo: uma jovem branca de 23 anos da classe alta, dona de uma plantação de algodão que emprega ainda vários negros. No início do livro, a narrativa apresenta uma Skeeter maioritariamente centrada nos problemas que tem em relação à sua imagem e personalidade e como isso dificulta a sua integração numa classe mais ‘aristocrata’. Vemos como, inclusive, vive algo alheada das privações das pessoas de raça negra e assistimos ao despertar de uma quase epifania que lhe abre os olhos para esse fosso que até então lhe tinha passado despercebido. Um novo e desejado desafio profissional será o mote para Skeeter se aliar a Aibeleen e juntas começarem um projecto clandestino que poderá mudar vidas – mas mudar para melhor ou para pior?

Este é um daqueles livros que vale principalmente pelas personagens. O enredo não é complexo e torna-se mesmo aborrecido momentaneamente, embora nunca nos deixe verdadeiramente sem vontade de continuar porque há sempre um qualquer mistério no ar – o que aconteceu à criada de Skeeter, que coisa tão terrível é que Mimi diz que fez à patroa, etc. Nestas páginas rimos muito com a Mimi, bufamos de raiva pela Hilly, empatizamos com a Skeeter e choramos com a Aibeleen. Tantas mulheres diferentes, com percursos tão díspares e todos eles válidos e relacionáveis para alguém. E, no entanto, não nos podemos deixar enganar pelo humor, jovialidade e até esperança que alguns episódios poderão deixar transparecer: Jackson continua a ser uma cidade em que um jovem é cego por utilizar uma casa de banho errada e um governador negro é assassinado à porta de casa (este baseado no verdadeiro caso de Medgar Evers que foi morto pelo Ku Klux Klan).

Medgar Evers, activista de direitos civis, assassinado a 12 de Junho de 1963. O assassino só viria a ser condenado em 1994.

É uma obra muito boa, notável até se considerarmos que foi a primeira publicação de Kathryn Stockett (que curiosamente nunca mais lançou nada, até ver). É possível que de certa forma a autora tenha romantizado a relação entre criadas negras e senhoras brancas, um aligeirar de algo que na realidade foi bem mais brutal e menos digno. Ou também é possível que não, e na verdade nós é que esperamos ler apenas sobre miséria e sofrimento quando afinal havia até alguma humanidade e respeito no meio de uma tragédia social. Quase da mesma forma que a maioria de nós reage mal a contos mais enfatuados e até “felizes” de episódios passados nos campos de concentração durante o Holocausto. Compreendo tanto o lado dos que ficam indignados como o dos que ficam apaziguados e esperançosos. No caso de “As Serviçais”, opto pela segunda via. É um livro bonito, humano, bem escrito e que levou milhares de pessoas a falar sobre eventos e temas que se calhar até desconheciam, e por isso já é muito valioso. Conhecimento nunca é demais. Recomendo muito esta leitura, mas se não estiverem mesmo para aí virados, pelo menos dêem uma oportunidade ao filme homónimo – há quem diga que chega a ser melhor que o livro!

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